Análise Do Processo C-278/21 Da Segunda Secção Do Tribunal De Justiça Da União Europeia (AquaPri)

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  • Madalena Carranca

Introdução

O conflito sub judice que dá origem ao presente acórdão da segunda secção do Tribunal de Justiça da União Europeia[1] (doravante TJUE) tem como ponto de partida um reenvio prejudicial a pedido de um tribunal dinamarquês que questionava a aplicação do Artigo 6(3) da Diretiva 92/43/EC.

Estava em causa uma exploração piscícola pertencente à empresa AquaPri localizada numa baía dinamarquesa. No caso discutia-se essencialmente se o aumento de emissões num projeto já existente consistia num projeto novo, ou num projeto já existente para efeitos de interpretação do artigo 6º(3). Tendo chegado ao TJUE, levantaram-se questões relativamente à interpretação deste artigo. Ora, o objeto deste comentário será, então, destacar os principais problemas que encontramos com a interpretação dada pelo TJUE a este artigo tanto num plano de aplicação de direito europeu, como numa ótica de risco para o ambiente.

Enquadramento Legal:

O Tribunal de Justiça da União Europeia identifica[2] o quadro jurídico relevante para a análise do caso tendo dividido essencialmente entre duas fontes legais: o direito da União Europeia e o direito dinamarquês.

Quanto ao direito da União Europeia destaca essencialmente o décimo considerando da Diretiva Habitats[3] que refere que “qualquer plano ou programa suscetível de afetar de modo significativo os objetivos de conservação de um sítio designado ou a designar no futuro deve ser objeto de avaliação adequada” e ainda o artigo 6º(1) a (3) da mesma Diretiva.

No plano nacional, destaca no direito dinamarquês essencialmente dois artigos da Lei Dinamarquesa sobre a proteção do ambiente[4] que prevê essencialmente quais as atividades perigosas para o ambiente sujeitas a autorização e ainda o Decreto Habitats[5] que transpõe a supra referida Diretiva Habitats que determina a obrigação de sujeição a Avaliação de Impacto Ambiental a projetos que “individualmente ou em conjugação com outros planos e projetos, é suscetível de afetar um sítio Natura 2000 de maneira significativa”, nomeadamente os sujeitos a autorização pela Lei anteriormente referida.  Por fim, destaca ainda o Decreto que prevê o Licenciamento[6] destas atividades sujeitas a AIA e a autorização.

Descrição Factual do Caso:

No caso analisa-se uma exploração piscícola localizada na baía de Småland na Dinamarca (perto de um sítio qualificado pela Natura 2000), detida e operada pela empresa dinamarquesa AquaPri. A exploração em si focava-se na criação de trutas “arco-íris” o que implica uma emissão ou descarga no ambiente de azoto, fósforo, cobre e antibióticos. Este projeto foi objeto de uma avaliação de impacto ambiental e posterior autorização de exploração concedida a 15 de fevereiro de 1999.

Mais tarde, em 2006, a AquaPri pediu uma autorização para aumentar a quantidade de azoto que poderia ser emitida na sua exploração. Após avaliação pela entidade dinamarquesa competente, concluiu-se que “que não havia, no sítio em causa, habitats naturais ou espécies de aves selvagens sensíveis ao azoto e, portanto, suscetíveis de ser afetados de forma significativa pelo projeto da AquaPri”[7] [8]. Assim, a entidade autorizou através de decisão a execução de projeto a 27 de outubro de 2006. Esta autorização estava prevista ser renovada em 2014 tendo sido concedida nesse ano após a entidade competente constatar que a quantidade de azoto emitida pela exploração permanecia inalterada.

A primeira decisão foi então impugnada judicialmente com o fundamento de que a autorização não considerou a existência de explorações piscícolas vizinhas, o que já representava um aumento significativo de emissões na referida baía. No entanto, a instância considerou que a decisão não padecia de nenhum vício. A ora entidade competente conferiu então à AquaPri a autorização constatando essencialmente dois factos:

  • Em primeiro lugar, que desde que tinha sido concedida a autorização em 2006 constatava-se que não teria havido qualquer aumento relativamente às emissão de azoto.
  • E, em segundo lugar, o Tribunal baseou-se num Plano Nacional[9] posterior à decisão que constatava a AquaPri e as três explorações vizinhas, consideradas conjuntamente, não eram suscetíveis de afetar de forma significativa o sítio Natura 2000 perto do qual se encontram.

A segunda decisão foi então recorrida para instâncias judiciais que, desta vez, anularam-na com fundamento de violação do artigo 6º(3) da Diretiva Habitats uma vez que a avaliação feita antes da autorização de 2006 considerou o projeto da AquaPri de forma individual e não considerando os restantes três. Referiu ainda que apesar de ter baseado a sua última decisão num Plano Nacional já efetuado, este não exonerava a entidade de efetuar uma avaliação de impacto ambiental específica da exploração pertencente à AquaPri a fim de perceber se o aumento de emissões era suscetível de afetar negativamente o sítio Natura 2000, nas proximidades do qual se encontra. Referiu ainda que havia suscetibilidade de haver um impacto negativo.[10]

Após esta decisão, a AquaPri interpôs recurso para a última instância dinamarquesa que por sua vez recorreu ao mecanismo do reenvio prejudicial suscitando as seguintes questões e dando origem ao caso em análise:

Primeira Questão: “Deve o artigo 6º, nº3, da Diretiva 92/43 ser interpretado no sentido de que é aplicável a uma situação como a do presente processo, na qual foi pedida uma licença para a prossecução das atividades de uma exploração de aquicultura já existente, (…), mas não tendo sido realizada, no âmbito da concessão da licença anterior para a exploração de aquicultura, uma avaliação da atividade global e dos efeitos cumulativos de todas as explorações de aquicultura existentes na zona, na medida em que as autoridades competentes avaliaram unicamente a descarga adicional global de azoto e outras substâncias proveniente da exploração de aquicultura em causa?” [11](sublinhado nosso).

Segunda e Terceira: “Para efeitos da resposta à questão 1, é relevante que o Plano tenha em conta a presença das explorações de aquicultura na zona”[12] e “Quando, numa situação como a do presente processo, deva ser realizada uma avaliação em conformidade com o artigo 6.o, n.o 3 a autoridade competente está obrigada a tomar em consideração, no âmbito dessa avaliação, os limites relativos à descarga de azoto previstos no Plano Nacional (…)”[13]

Solução do Tribunal

Quanto à primeira questão, o TJUE refere que estava em causa uma decisão de autorização de 2006 que foi precedida de uma avaliação de impacto ambiental que não estava de acordo com o artigo 6º(3) da Diretiva Habitats.[14] Logo, conclui que num caso em que as condições da produção estejam inalteradas desde a concessão da autorização, então uma alteração à produção que carece de nova autorização não deve ser sujeita à avaliação do artigo 6º(3) da Diretiva Habitats. Contudo, se a primeira autorização não respeitar as exigências do artigo 6º(3), então a obtenção da nova alteração deverá ser precedida de avaliação de impacto ambiental.[15]

Quanto à segunda questão, o tribunal refere que a avaliação à qual se submete o projeto será adequada se as constatações, apreciações e conclusões que utilizar forem “completas, precisas e definitivas, por um lado, e se permitirem dissipar qualquer dúvida científica razoável quanto aos efeitos desse plano ou projeto no sítio em causa, por outro”[16], referindo ainda que quando se submete um projeto a avaliação ambiental ter-se-á que considerar as avaliações anteriormente realizadas que correspondam a estes critérios, sendo que apenas poder-se-á retirar conclusões dessas avaliações se quando o projeto se tenha mantido essencialmente inalterado cabendo à entidade competente para a autorização definir pela utilização ou não das avaliações pré-existentes.

Análise Crítica:

  • Quanto à primeira questão:

A Diretiva Habitats define, desde logo, no artigo 6º(3) que os planos ou projetos que possam direta ou indiretamente afetar coletiva ou individualmente um espaço Natura 2000 devem ser sujeitos a avaliação de impacto ambiental. Esta obrigação da avaliação pode envolver projetos que não estão relacionados entre si, mas que operam no mesmo espaço e com a mesma incidência, sendo que a ratio da exigência da obrigação parece ser que não seria uma verdadeira avaliação se não se considerasse todos os possíveis fatores de risco para o sítio em questão.

Deste modo, o Tribunal procurou perceber se o pedido de autorização para aumentar as emissões de nitrogénio era um “projeto”, sendo que se fosse seria subsumível a esta disposição e seria obrigatória uma AIA. Recorrendo a jurisprudência do TJUE, este refere que o conceito de projeto na Diretiva habitats era mais abrangente do que o conceito referido na Diretiva 2011/92/UE do Parlamento Europeu e do Conselho que determinam o regime da Avaliação de Impacto Ambiental. Ou seja, além de abranger obras ou intervenções que alterem a realidade física do sítio, relevam também quaisquer outras atividades que, sem estarem ligadas ou serem necessárias à gestão de um sítio protegido, são suscetíveis de o afetar de maneira significativa.

Contudo, apesar do Tribunal considerar o conceito de projeto mais abrangente, tem distinguido quando é que considera que estamos perante um projeto novo para efeitos de obrigação da AIA remetendo, novamente, para decisões anteriores. Assim, decorre da jurisprudência do TJUE[17] que não estamos perante um projeto novo quando “existir continuidade e identidade entre a atividade autorizada e a prosseguida, tendo em conta, nomeadamente, a natureza dessas atividades e os seus lugares e condições de execução”[18].

Ora, quanto a esta resposta do TJUE, encontramos essencialmente duas inconsistências. Em primeiro lugar parece-nos contraditório que o Tribunal refira que o conceito de projeto na Diretiva Habitats seja mais amplo, sendo que depois encontra uma “via de escape”. Esta consiste na afirmação do Tribunal de que apesar de ser considerado projeto, pode não ser considerado um projeto novo. E se assim o for, então não está sujeito a AIA. Ao determinar um conceito mais amplo, parece que esta Diretiva procurou conferir maior proteção a sítios da Rede Natura 2000 que possam ser afetados por certas explorações. Esta proteção é confirmada pelo artigo 6º(3) da Diretiva que não só exige que sejam submetidos a AIA projetos que estejam em sítios Rede Natura 2000, como em sítios em potencial contacto com sítios Rede Natura 2000. O que nos parece fazer sentido tendo em conta a necessidade de intervenção da regulação em realidades em que a probabilidade de os riscos ambientais terem consequências mais gravosas é superior.

Em segundo lugar, parecem-nos desadequados os argumentos utilizados pelo Tribunal em particular quando faz uma remissão para os casos em que se definiu que um projeto não seria novo se existir continuidade e identidade entre a atividade previamente autorizada parece abstrair-se demasiado do caso em questão. Está em causa uma exploração piscícola localizada numa baía onde se encontram mais três explorações em que todas emitem nitrogénio, entre outras substâncias. Parece-nos enviesado o argumento de que a atividade se encontra idêntica ao fim de quinze anos, sem apresentar qualquer argumento factual que o acompanhe. Mais, parece desconsiderar a complexidade de um meio marinho onde há espécies que contactam com estas emissões diariamente quando há quinze anos não contactavam. Espécies estas que estão vivas, reproduzem-se e têm um nível de imprevisibilidade elevado por não se tratarem de seres racionais ou controlados pelo ser humano.

  • Quanto à segunda e terceira questão:

Relativamente à obrigação de sujeição a AIA, o Tribunal refere que “esta só pode ser considerada adequada se as constatações, apreciações e conclusões que contém forem completas, precisas e definitivas, por um lado, e se permitirem dissipar qualquer dúvida cientifica razoável quanto aos efeitos desse plano ou projeto no sítio em causa, por outro.”[19] Contudo, refere que é critério para determinar se um projeto deve ser sujeito a AIA ou não “avaliações que possam ter sido desenvolvidas anteriormente desde que completas, precisas e definitivas”.

Ora, parece-nos evidente que estamos perante uma expressão do princípio procedimental de aproveitamento dos atos. Contudo, este princípio é algo que tem como objetivo evitar a repetição de atos que se possam mostrar dispendiosos e desnecessariamente repetitivos no âmbito de um procedimento. Apesar de ser verdade que uma AIA é um procedimento dispendioso, parece-nos que seja necessária a sua repetição em situações em que esta seja obrigatória. Ou seja, parece-nos desmedida a discricionariedade da entidade competente que é quem define se as avaliações anteriores podem, ou não, ser aproveitadas no caso concreto.

É de louvar todos os procedimentos que procurem a desburocratização, contudo num tema sensível como o impacto ambiental num sítio Rede Natura 2000 não nos parece justificar. Aliás, seria desproporcional que a proteção do ambiente cedesse perante a celeridade e economia procedimental. Mais, importa referir que no caso concreto estava em causa uma decisão anterior que tinha sido precedida de uma AIA que apenas teria considerado a potenciais consequências da exploração AquaPri individualmente, sem considerar como fatores as restantes três explorações.

Parece-nos ainda que o Tribunal mais uma vez procura fazer uma interpretação do artigo 6(3) da Diretiva que desvirtua a obrigação lá estabelecida visto que transfere à entidade competente para conceder a autorização, a discricionariedade de decidir se um projeto sujeito a avaliação deve realizá-la ou reaproveitar avaliações já existentes.


Peer-reviewed by:

  • Lucila de Almeida, Abreu Chair in ESG Impact, Coordinator at NOVA Green Lab, Professor at NOVA School of Law.
  • Beatriz Gomes, Project Manager at NOVA Green Lab, Master’s student in Public Regulatory Law.

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Tiago, “Pelos Caminhos Jurídicos do Ambiente – Verdes Textos I”,1a Edição, AAFDL Editora, 2014

TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel. Introdução ao Estudo do Direito. 2018, Reimpressão 2023, Almedina.

GOMES, Carla Amado, “Introdução ao Direito do Ambiente”, 2a Edição, AAFDL Editora, 2014.

PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente”, 1a Edição, Almedina Editora, 2002.


[1] Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[2] Cfr. §3-10 do Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[3] Diretiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1992, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A31992L0043

[4] Miljøbeskyttelsesloven.

[5] Habitatbekendtgørelsen.

[6] Godkendelsesbekendtgørelsen.

[7] Cfr. §14 Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[8] É importante destacar que nesta avaliação a entidade competente apenas considerou a AquaPri, não tendo considerado as restantes explorações vizinhas a esta.

[9] Plano Nacional de Gestão de Bacias Hidrográficas aplicável às águas que se encontram na zona em causa para o período de 2015-2021, na sequência de uma avaliação efetuada em conformidade com o artigo 6º, nº3, da Diretiva 92/43.

[10] Cfr. §20-21 do Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[11] Cfr. § 27 do Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] Na medida em que tinha em conta unicamente a incidência individual do projeto em causa e não a incidência desse projeto considerado conjuntamente com outros projetos.

[15] Cfr. §42-47 do Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[16] Cfr. §51 do Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[17] Nomeadamente dos casos: Acórdãos de 7 de novembro de 2018, Coöperatie Mobilisation for the Environment e o., C-293/17 e C-294/17, EU:C:2018:882, n.o 83, e de 29 de julho de 2019, Inter-Environnement Wallonie e Bond Beter Leefmilieu Vlaanderen, C-411/17, EU:C:2019:622, n.os 129 a 131.

[18] Cfr. §35 do do Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

[19]Cfr. §51 do do Acórdão do Processo C-278/21 da Segunda Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62021CJ0278

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  • Madalena Carranca