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Escassez de Água em Portugal e o Direito

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  • Beatriz Gomes
  • Catarina Rocha

No passado dia 23 de fevereiro, o NOVA Green Lab organizou um evento no qual se discutiu a atual situação de escassez de água em Portugal e as suas implicações a nível do Direito. Este evento contou como oradora principal a Professora Dra. Vera Eiró (ERSAR e UNL) e enquanto moderadora de debate a Professora Dra. Lucila de Almeida.

Iniciou-se o evento discutindo a situação de seca meteorológica e hidrológica no Algarve e a perceção que o público tem da mesma. A discussão foi avançando apresentando como fio condutor: identificação do papel da ERSAR, algumas características da água enquanto substância, a situação atual de escassez do Algarve, o desafio da gestão da água numa ótima de política pública e as soluções do jurista.

De modo geral, as situações de seca em Portugal são relativamente comuns, é um fenómeno que os portugueses já se habituaram a ouvir pelas notícias diárias. Todavia, e como veremos, a situação atual é mais séria do que os meios de comunicação social parecem retratar.

Desde logo, dado que as reservas hídricas superficiais e subterrâneas na região sul do país encontram-se numa situação séria de escassez, discutem-se opções de limitações de usos deste recurso natural. Estas opções são discutidas pelas diversas entidades envolvidas, entre as quais se encontra a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), que age num plano de regulação económica, bem como num plano de regulação ambiental no que respeita a qualidade da água para consumo humano, e a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), através do seu Departamento de Recursos Hídricos.

Enquanto entidade reguladora, a ERSAR é responsável por monitorizar, em conjunto com as entidades gestoras, o cumprimento da legislação vigente sobre o controlo da qualidade da água nos sistemas de abastecimento público em Portugal continental. Portanto, as fiscalizações desempenham um papel importante no ciclo de regulação da qualidade da água. 

Considerando os dados de que a ERSAR dispõe no âmbito do ciclo de regulação económica, verifica-se que na distribuição deste recurso, as perdas na rede são um fenómeno inevitável mas que está longe de estar em níveis aceitáveis em Portugal. As perdas de água na rede correspondem ao volume de água correspondente à diferença entre água entrada no sistema e o consumo autorizado, isto é, corresponde à água que é tratada pelas entidades competentes, mas que se perde na rede. Costuma apontar-se os 10% como uma percentagem normal de perdas de água na rede, valor que está muito abaixo das perdas de água na rede que Portugal regista atualmente (cerca de 40% nalguns municípios, sendo, em média, na região do Algarve de mais de 20%).

Ambientalmente, este fenómeno em si não é problemático — dado que água nos terrenos não os polui —, mas consubstancia um dano ambiental na vertente do dispêndio energético, dado que são gastos de recursos (veja-se, por exemplo, energéticos) para tratar a água e garantir que esta tem a qualidade necessária para o consumo humano. Existe um grande esforço na captação, que implica recursos, e que não se traduz no volume de água que chega ao destinatário final, o que é profundamente problemático em situações de escassez. Numa situação de escassez, o controlo de perdas permite a diminuição da procura de água o que é absolutamente fundamental.

Em consequência da escassez sentida em Portugal, e para permitir o aumento de oferta de água, foi recentemente iniciado um concurso público internacional para a construção e operação da primeira dessalinizadora pública em Portugal Continental (já existe uma em Porto Santo, na Madeira), mas este investimento, ainda que necessário, é bastante elevado por diversos motivos. Primeiro, o processo de dessalinização em si é intensivo em termos de gastos energéticos, exigindo tecnologias sofisticadas e consumindo grandes quantidades de energia. Além disso, a manutenção destas instalações é complexa, requerendo investimentos contínuos em equipamentos e pessoal especializado. Os custos de construção e operação são também elevados e podem ser influenciados por fatores como a localização geográfica, o acesso à água do mar e os regulamentos ambientais. Na realidade, à partida, será mais custoso produzir água potável a partir do mar do que consertar a rede, mas esta será sempre uma opção de governança.

Ora, a água é uma molécula que tem uma utilização tão básica como constituir 70% do corpo humano. É essencial para a manutenção de (qualquer) vida na Terra. A água é uma molécula que permite a sua divisão em átomos (dois de hidrogénio e um de oxigénio), sendo assim apta, através da eletrólise da água, a produzir energia. É também um excelente condutor. Além disso, a água é essencial, não só para a vida do ser humano, como para a própria produção de bens e serviços. Veja-se o caso das baterias de lítio para a produção de carros elétricos. A indústria da produção do lítio é altamente consumidora de água, pelo que, perante a sua escassez, a produção de carros elétricos ficará comprometida e, consequentemente, também colocará em risco os objetivos da transição energética.

Em específico, no Algarve, a crise da escassez da água tem-se vindo a intensificar, dado que o fenómeno de seca na região não só é um problema recorrente, mas também cumulativo, pelo que atualmente estamos perante um fenómeno de escassez derivado de anos cumulativos de seca meteorológica (pluviosidade reduzida) e seca extrema hidrológica (reservatórios de água nas albufeiras em défice). 

A resposta passa por estratégias de políticas públicas. Cabe, perante este cenário, a aplicação de políticas de natureza cautelar e preventiva, sendo que algumas são respostas temporárias considerando o cariz crónico do problema. Não obstante, o sucesso das próprias políticas que implementam objetivos a médio e longo prazo está dependente do êxito das políticas a curto prazo e de medidas cautelares de redução de procura. 

A redução da procura de água é uma parte fundamental da gestão sustentável dos recursos hídricos, ajudando a garantir a disponibilidade de água para as gerações futuras e para os ecossistemas naturais. Esta redução a curto prazo pode evitar problemas ou complicações maiores no longo prazo, principalmente no que concerne à resiliência perante as alterações climáticas, à mitigação de conflitos jurídico-sociais futuros relativamente à gestão e aplicação deste recurso e pela própria conservação dos recursos hídricos potáveis.

A diminuição da procura da água encontra-se intimamente ligada com a diminuição das perdas da rede, conforme já se tinha referido, e uma melhor aplicação do recurso, sendo por isso necessária a indução de comportamentos de poupança através da reorientação do uso da água para fins mais nobres. Neste sentido, fins menos nobres podem ser identificados como o uso da água em sistemas de irrigação ineficientes ou em fontes meramente ornamentais, sendo que fins nobres podem ser caracterizados como o consumo humano.

No que concerne à procura e à indução de comportamentos mais sustentáveis, existem algumas estratégias essenciais que podem ser utilizadas. A título exemplificativo, o princípio clássico do poluidor-pagador (segundo o qual os agentes económicos responsáveis pela poluição ou degradação ambiental devem suportar os custos associados à mitigação, remediação ou prevenção dos danos causados ao meio ambiente), inspira o princípio do utilizador-pagador. No caso da água, quem utilize o recurso natural deverá suportar o seu custo. 

Esta medida, que promove o pagamento do custo real pelo utilizador, induz comportamentos de poupança, mas se o preço a pagar for excessivamente baixo (como o é atualmente), o efeito desejado não é alcançado. Atualmente, considerando este fenómeno, existe em Portugal uma sensação de não escassez (ou abundância) deste recurso. É necessária uma intervenção do Direito para garantir a valorização do bem água. Existem, porém, vários atores e entidades competentes no plano da gestão da água, cada um com as suas próprias agendas, o que dificulta a implementação rápida das medidas necessárias para a gestão consciente e eficiente deste recurso.

Além de se diminuir a procura por este recurso natural, seria ideal aumentar a oferta do mesmo na região do Algarve, tal será possível por três essenciais mecanismos: a reutilização da água doméstica (para a rega dos terrenos ou limpeza das ruas); a dessalinização, cujo processo toma agora relevância em Portugal, considerando o concurso público n.º2530/2024, de 16 de fevereiro; e os transporte de água, com as suas vantagens e desvantagens.

Com enfoque no mais recente concurso público para a “conceção-construção e exploração do sistema de dessalinização na Região do Algarve: dessalinizadora no Algarve”, o tema em questão ganha importância acrescida, já que, apesar do seu contributo, a dessalinizadora não cobrirá toda a produção deficitária. A existência deste novo recurso de abastecimento de água não eliminará — principalmente a curto prazo — o problema em mãos, dado que há que considerar todos os pormenores inerentes à temporalidade da conclusão do próprio concurso público, bem como a temporalidade da sua construção e exploração. Assim sendo, apesar do contributo deste novo instrumento, a necessidade de aplicação de estratégias de gestão e racionalização da água não é mitigada, continuando a ser necessária a aplicação destas medidas antes e durante o funcionamento da dessalinizadora.

Perante este cenário, há que relembrar também certas considerações de direito internacional. 

Outras considerações importantes (e, neste contexto, finais) são as de proporcionalidade nas suas três dimensões (adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu). A proporcionalidade, enquanto mandato jurídico, é de extrema relevância quando se elaboram políticas de restrição ou proibições de utilização da água. Num cenário de urgência, caso se venha a agudizar, será eventualmente necessário declarar estado de emergência na região do Algarve, legitimando-se certas restrições de utilização do recurso hídrico que, não deixando de ser proporcionais, de outra forma não seriam admissíveis à luz dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.

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  • Beatriz Gomes
  • Catarina Rocha